Mais um excelente texto do LetrasAoAcaso, que tenho a honra de aqui colocar.
Merece uma leitura atenta e de reflexão em finais de mais um ano!
Sem esperança!
[Respiram-se os últimos dias de arremedos; tal como na velha Berlim antes da guerra, uma enganadora liberdade respira-se até ao limiar dela. Na sombra paira o fantasma das trevas]
Medir o Tempo, controlá-lo é algo tão velho como o próprio homem.
Por determinação Papal – lembro que o calendário que nos rege foi promulgado por Gregório XIII no ano de 1582 e veio substituir o calendário Juliano que vigorava desde o ano 46 A. C. instituído por Júlio César e que havia sido concebido pelo astrónomo alexandrino, Sósigenes – estamos a chegar ao final de mais um ano, sempre tempo de balanço.
A esperança sempre renovada de que o próximo "será o ano da mudança" salda-se invariavelmente pela desilusão.
O mundo está cada vez mais injusto, as soluções para inverter esta tendência não surgem, esperando-se quiçá a intervenção divina para algo que é do domínio exclusivo do ser humano. Cada um de nós pode operar o milagre. Bastaria para tanto a boa vontade, a tolerância, a solidariedade.
Porém cada homem é cada vez mais uma ilha egocêntrica que teima em olhar apenas para o próprio umbigo.
Ganham com isto os detractores da vida, da liberdade e da dignidade.
Berlim 1930:
A Kunfurstendamm, a grande avenida mandada construir por Bismarck, para tentar ultrapassar os Campos Elíseos, reunia e simbolizava nessa época ainda não muito distante no Tempo, todas as loucuras e prazeres da época. - Goebbels viria a defini-la como a "avenida de todos os deboches" –
Amontoavam-se nesta avenida galerias de arte, boîtes nocturnas, costureiros chiques, cinemas, cafés da moda, sempre animada por um povo efervescente, cosmopolita, versátil e frívolo, amante da arte e dos artistas.
Na sala barroca do "Gloria-Palast" Marlene Dietrich, é aplaudida de pé por centenas de convidados pelo seu desempenho no filme "Anjo Azul". Havia nascido uma estrela. Controversa, como se sabe.
Mesmo em frente ao "Gloria", o Romanisches Kafe, onde pululavam todas as vanguardas.
Discutia-se acaloradamente em tons boémios, Trotsky e Bukarine, esperava-se poder ver Brecht, Lang, Heinrich Mann, Ernst Lubitsch, quem sabe, Otto Dix ou mesmo Kurt Weill?
Jornalistas, editores, escritores famosos davam muito do seu tempo ao célebre café sem sedução alguma.
Aparentemente respirava-se liberdade por todos os poros.
Porém o fantasma que ainda hoje ensombra o mundo espreitava apenas a oportunidade certa.
Sobreveio o cataclismo.
A II guerra Mundial, um dos muitos crimes com que a humanidade se manchou definitivamente.
Mundo 2004:
Miséria – Sudão é apenas um de muitos outros exemplos.
Guerra – pontua o Iraque ocupado pela "civilização" Ocidental que impõe pela força o que não foi capaz de impor pela tolerância.
Corrida ao armamento por parte da maioria dos países, tentativas de extermínio de outras raças - Israel tenta a todo o custo exterminar os vizinhos Palestinianos.
As guerras tribais – Ruanda versus República "Democrática" do Congo e tantas outras.
Como se tudo isto não bastasse, os cataclismos – veja-se o número impressionante de vítimas em países do sudeste Asiático mesmo no findar de um ano para esquecer –
Olhando para os homens que lideram o planeta não poderemos esperar milagre algum.
Bush continuará a sua política arrogante, os caciques regionais para o continuarem a ser, alimentarão o caos, os oprimidos continuarão a sê-lo, da mesma forma que os poderosos o continuarão a ser também.
Portugal 2004
Não somos a excepção.
Digo-o com mágoa.
Um ano em que um primeiro-ministro foge às responsabilidades após uma tremenda derrota eleitoral, a incapacidade do PR (Presidente da República) em ser capaz de fazer um juízo de valores que olhasse o país e não interesses mesquinhos e vingançazinhas pessoais, o descrédito - ainda mais - das instituições que supostamente deveriam funcionar em prol de todos e não apenas de alguns, a mediocridade de um (des) governo saído não se sabe de onde, perdido, alheio aos problemas do colectivo e da "cousa pública", o desvirtuar de tudo no mundo do desporto - sobretudo no futebol, onde impera a "cousa nostra" - o cair da máscara hedionda que tapou durante anos pessoas que aprendemos a admirar, mergulhados no lodaçal da suprema infâmia da violação de menores, a corrupção generalizada a nível do Estado, o enriquecimento repentino de muitos políticos da nossa praça e tantas outras questões sem aparente resolução à vista.
Para que olhemos para o lado errado das coisas, presenteiam-nos com "quintas de celebridades/anormalidades", "1, 2, 3", passando-nos a todos atestados de burrice.
A somar a tudo isto a guerra civil que se trava nas nossas estradas, onde os condutores se degladiam alegremente até à morte de um deles ou de ambos.
César certamente estará de polegar invertido.
A matança continua como o demonstram os números negros do Natal.
2005, o que esperar?
As ruas das grandes cidades continuam animadas, pese embora a crise instalada um pouco por todo o mundo.
As pessoas continuam alegremente despreocupadas com os semelhantes, com tudo o que as rodeia e as devia preocupar. O supérfluo toma o lugar do essencial.
O que esperar? – A continuação das ditaduraszinhas disfarçadas de democracias, um Hitler perfilado no horizonte, só que desta vez vindo do outro lado do Atlântico, mais fome, mais guerras e mais miséria.
O que esperar?
Nada.
A não ser que o milagre do acordar se dê.
"Belisquem-nos porque teimam em dormir" diria Pessoa.
Acrescento: somos zumbis.
Acabaremos um outro ano no mês décimo e o engano alastrará a tudo.
Anseio pelo regresso ao calendário Juliano que tinha mais um mês. Quem sabe nesse – mesmo que apenas nesse – pudéssemos ser felizes!
"LetrasAoAcaso"