Sugestão de Fim de Semana
O texto é um pouco longo mas vale a pena ler até ao final, porque retrata fielmente o espirito das Feiras Novas e o que representam para nós Limianos.
"Pode dizer-se que, com as Feiras Novas de Ponte de Lima, termina o ciclo de Romarias do Alto Minho, esta sedutora Vila, pérola do Minho, terra de Diogo Bernardes e António Feijó, que no lendário Lima e nessa Ribeira de encantos "terra mais linda não encontrei".
FEIRAS NOVAS, porquê?
Desde 1125 que existem as tradicionais feiras quinzenais de Ponte de Lima, designadas feiras velhas, às segundas-feiras, as mais antigas do País, já mencionadas no foral de D.ª Teresa, confirmadas por D. Dinis em 1212, passando a feira "real" no tempo do rei Fernando.
Em 1826 tendo como fundamento a existência de três dias de feira para comércio e maior veneração da Padroeira (a imagem de Nª Sr.ª das Dores) D. Pedro IV autorizou que fossem criadas as Feiras Novas, em oposição às velhas, nos três dias de festa, normalmente, no terceiro fim de semana do mês de Setembro.
"Mas as Feiras Novas são mais que romaria: são festa, feira, estúrdia e arraial.
Não precisamos de nos socorrer da narrativa maravilhosa do Conde d' Aurora porque elas aí estão, como outrora, a ser o grande centro das "trocas", naquele areal extenso, nas ruas locais, na Praça de Camões: a feira do gado, dos linhos e atoalhados, dos barros de Barcelos e Alvarães, de Prado e da Vista Alegre; o mercado das ferragens, da pregaria e das tacholas; das alfaias agrícolas, dos pipos e aduelas; dos vendedores ambulantes e aí, aparece de tudo: o calçado e o pronto a vestir, os cobertores e os relógios, as "bolachas" e a "cassette", o "ratinho" e as "panelas" e aquela voz roufenha e vernácula a dizer: "Eu sou o João de Venade".
Arraial, e aqui há que deixar a Avenida e mergulhar na areia, passar pelas tendas e, nas filas paralelas da multidão, forçar a custo a ida aos "carrosséis", ao "poço da morte", às "cadeirinhas", aos "carrinhos", ao "palácio do riso", ao "comboio fantasma", ao circo "Mexicano", aos "comes e bebes", aos "matraquilhos".
Os tascos ao ar livre também, não faltam. É a orgia de Baco em tendas escarranchadas, abertas ao sol do meio-dia; são os pipos bojudos a refrescar à sombra do verde loureiro, o bacalhau frito, a sardinha assada a boroa de milho, a malga do verdasco.
Mas chegou a hora das "filarmónicas". O sino da Matriz deu o toque. São as dez da noite uma noite cálida com a lua espelhada no rio.
É o principio do "arraial".
A "banda" da Festa, no palanque vistoso, e a preceito, arranca com a "1812", e os ecos da"Marselhesa" perdem-se pelos campos de "Além-da-ponte"; a outra, rival e não menos conceituada, bota para os apreciadores e são tantos (ainda bem) a "Tanhauser"; depois, o contra ataque e saem os acordes da "La Gazza Ladra". E a multidão arrasa, com palmas, maestro e executantes.
- Maravilha, melhor que nos Arcos.
Outros, com o ouvido mais - aguçado: "bom lábio aquele solo de trompete" e recorda a filarmónica que esteve no Senhor do Socorro. E todos se dirigem para o outro coreto! Uns esperam pelos primeiros compassos; outros mais reguilas aguardam que o papel com o nome da "peça" escolhida seja colocado no escaparate do palanque:
- Boa - dizem uns.
- Já não tem folgo - resmungam outros!
Os músicos da outra "banda" esperam de ouvido à "escuita"! E saem os primeiros andamentos. Há um misto de espanto, quase de incredibilidade nos "entendidos".
Por isso, já esquecido do último bouquet que iluminou os ares e fez do Lethes o rio do esquecimento, me descontraio por aquelas ruas da Vila, velhinha de séculos, já liberto do "stress" e dos forasteiros que me acotovelaram e me pisaram com o frenesim de assistirem ao espectáculo, aos cortejos, aos ranchos, à procissão e, contentes, em correria, ainda (até onde, talvez até à próxima discoteca?) vão perder o "segredo" das feiras Novas, o seu encanto, a sua história, o seu deslumbramento.
Fico-me, já liberto de intrusos, nesta comunidade limiana que me seduz e me traz, noite adentro, a nostalgia dos rumores da Ribeira Lima: de jograis, trovadores e poetas, serões e desfolhadas, castelos e peças, de cantigas de amigos e de amor, de escárnio e mal dizer!
É assim o Povo, pagador de promessas, folgazão e libertino.
Fico-me com o Cachadinha, o Delfim, o Caçador, o Rochinha e o Marinho, ao som das concertinas e das cantigas ao desafio, nas primeiras horas largas e sem tempo, naquelas "tasquinhas" de dentro da Vila, ali, a reviver e a comemorar lojas e moradias de quinhentos, com a Matriz a servir de fundo ao vira, à chula e ao malhão, ao verdasco e aos petiscos, da "Pensão Morais", do "Cem por Cento", do "Lampreia", do "Picapau" e do "Escondidinho".
Noite fora, a alegria não cai.
Os grupos percorrem a Vila. Confraternizam fidalgos de solar e jacobinos, as castrejas e as meninas de Ponte, "jeans" e saias avergastadas, "descamisadas" e "engravatados", o senhor Doutor e a moçoila da Correlhã. Ninguém pergunte se sabe dançar. E o grupo cresce em redor como que numa clara alusão ao nosso espírito gregário, e uma força anímica, feita de instinto e energia telúrica, faz balancear os corpos, o floreado dos pés, o entrelaçar dos braços, nas voltas do vira, o pedido de um beijo, um segredo de conversado!, o ciúme dos olhos pretos que a "feira das trocas" trocou mesmo.
Mas já as tendas do rio e do areal e da Alameda de S. João também se mexem!
É o Cachadinha!
E o Félix e a sua concertina mágica, ainda recordada da recente visita aos "Brasis" e às Américas.
Horas mortas da noite limiana, quentes neste peregrinar de Feiras Novas!
Começávamos no "Sarameleiro". Depois o "Petiscas" e a "Catrina". Sempre a infusa do verde a refrescar os pés doridos e as goelas ressequidas e os "rojões" quentes, as belouras e as farinhotas, manhã frouxa no meio do vira de oito, da serrinha, do vira velho, da caninha verde da praça!
Depois, já mais tarde era o Augusto.
Quanta saudade!
E passava, então, a velha ponte medieval, a pé, liberto de invejosidades e de tantas noites mal dormidas, a pensar na Capela do Anjo da Guarda e no velho souto da forca onde morreu um homem por roubar um galo! E o galo, milagre, morto, veio cantar a provar a inocência do condenado!
Depois, a velha ponte romana e a igreja de Santo António da Torre Velha
A animação não era menor, além da ponte!
Abanquei, como bom descendente da Galécia, na venda da "Lia". O Malheiro acompanhou-me, com chieira e estaleca, nesta noite de maré alta. Contou-me histórias lindas do seu amor à "Lia" (não é um nome de princesa?) e que teimou sempre em não casar! 50 anos namoradores agora já murchos de tanto noivar.
Quedei-me com o grupo de gente moça que esperava (até quando?), pela "carreira" até às Argas de S. Lourenço.
E dancei com elas no meio de pipos e de grades de cerveja, cestas do pão, restos de farnéis e avós ensonadas. O Félix, em palanque organizado a preceito, no canto da loja, bem arrimado a um canjorão de tinto (nunca bebe branco!) arrancou com os foles e as palhetas gastas, a última chula. Já não tocava, era a concertina que, na magia de tantos arraiais fazia a estúrdia.
Num espaço mais que exíguo, quase um corredor, rapazes e raparigas alinharam-se!
Primeiro, um passo à frente. Outro, atrás. Depois, primeiro os homens, depois as mulheres foram ao meio. E no canto da "tasca" mesmo junto à "Lia" que fritava as últimas pataniscas, à voz do "mandador", os pares enlaçavam-se.
Era o "Inferno"! Há misturas de sons de flautas com clarinetes e trombones; saxos e trompetes; pratos e bombos já cansados; mas todos, todos terminam a tempo com uma pancadaria infernal. E de novo a multidão arranca em aplausos; maestro e músicos agradecem com vénias!
Empatados!
Depois, são as rapsódias. Mas aí já não é o despique das ditas "clássicas", das que definem o valor e a escolha para o próximo ano.
É meia-noite!
Estraleja o foguetório e as lágrimas, as balonas e as girândolas enchem o céu do sonho das estrelas. E, de novo, lá vem a agulha do contraste, a subtileza do chiste, a certeza do comentário feito de muitos arraiais, olhos no ar a contar cada foguete, cada lágrima, cada cor, o barulho dos morteiros. E o ajuste está feito verrinoso, sarcaz:
- Melhor que n’Agonia!
Festa de participação, de uma religiosidade intensa, revivida, ano após ano, numa mística peculiarmente minhota, as Feiras Novas, são uma mostra colectiva de como em pleno século XX e já no dealbar no séc. XXI, uma comunidade ainda sabe perpetuar um ritual que mesmo perseguido pelas novas tecnologias, mantém um cunho de autenticidade difícil de encontrar noutras Feiras/Festas e Romarias, inclusive do Alto Minho, em que, praticamente, as festas de participação são nulas, transformando-se rapidamente em festas de representação com as comunidades a viverem as suas "romarias" mais como espectadores, num espectáculo a que aderem e até se esforçam mas que não deixa de ser uma revivescência para cumprir um programa ou uma promessa, contrato para turista ver.
Por isso mesmo, me confundo com aquela multidão no meio da poeira, do barulho, da algazarra, da cor, de luz e de som; me junto ao "cigano" que vende "Lacoste"; às tourinhas que já cangam; aos bácoros, lavadinhos, da última ninhada; às moçoilas que de Arcozelo trouxeram a sua cesta, o seu "farnelzinho", com a meia dúzia de ovos, a galinha preta, o garnizé, um quarto de feijão, um punhado de fruta; aos garranos que no seu "travadinho"fazem léguas de enfiada e até corridas no seu "trote" gracioso e brilhante; ao "bricabraque das barraquinhas da Avenida dos Plátanos e da Senhora da Guia.
E só ficaram os olhos e os lenços, e o colorido das saias vermelhas na alegria dos corpos: Ó vai meia, ó vai uma, ó vai duas.
E marcou, de novo: Ó meia lua; ó uma cheia.
Chegou a "carreira"!
Eram bem as sete da manhã!
A Vila era um esquecer de gestos e vozes, de sons de concertinas e cantigas ao desafio de uma vida de taleigas e angústias, do "stress" do quotidiano!
Na neblina da manhã, sinos de bronze ecoaram pela Praça de Camões, pela Avenida dos Plátanos, pela Senhora da Guia, por arcos, grinaldas e festões, pelas tendas do rio e do areal e correram Ribeira acima, por encostas e vales, por torres e solares, vinhedos, leiras e hortas, na esperança do dia que, de novo, vai nascer! Eu esqueci-me do tempo neste regresso atávico e cíclico que, nas Feiras Novas, faço à Natureza Mãe neste mítico de regresso às origens.
Até p'ró ano!"
"Texto do Dr. Francisco Sampaio, Presidente da Região de Turismo do Alto Minho (1989)"
Agradeço ao Zé M. Santos, a autorização e ajuda na colocação de uma das músicas do seu Grupo (Norte Sul), aqui neste espaço. Obrigada Zé, pela gentileza.
6 Comments:
At 2:23 PM, zmsantos said…
Eu conheço bem esse cantinho de Portugal. Gente boa, pura, com o coração grande na hora de receber os visitantes, com o coração apertado na hora de deixar o seu país e ir trabalhar no estrangeiro.
As festas e as romarias são o veículo da sua alegria, são manifestações do seu orgulho na terra que os viu nascer.
Bem hajam, Minhotos, por aquilo que são!
E as comidinhas... hummm!!!!
At 2:43 PM, Desambientado said…
Desconhecia.
A cultura portuguesa é riquíssima.
Cumprimentos.
At 4:26 PM, Simbelmune said…
Esté mesmo aqui ao lado. Hoje estou de cama - pelo que suponho que não vou passar por lá. Para um solitário como eu, as feiras novas são local de fuga - porque é algazarra, é conviver, é grupo...
Por isso prefiro a Ponte tranquila e serena dos meus caminhos de Santiago. No entanto - fico sempre com a sensação de termos duas da smelhores romarias do país - as feiras de Ponte e a Agonia de Viana
At 5:40 PM, Nilson Barcelli said…
Ainda não foi desta vez que fui às Feiras Novas. Tinha prometido à Monalisa que iria lá... mas não deu. Fica para o ano.
Este teu post é uma excelente promoção para PTL e as suas Feiras Novas.
Beijinhos e bfs.
At 9:11 PM, Unknown said…
Deu mesmo vontade de ir lá... uma excelente sugestao para fim de semana.. um dia, quem sabe!!! :)
Beijos, minha querida!
At 1:31 AM, Sandra said…
Já aprendi mais qualquer coisa sobre o meu país... :)
Beijinhos
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