Lenda das Unhas do Diabo
O escrivão era odiado e temido.
Desonesto em extremo, sórdido usurário, mostrava-se sempre capaz de falsificar documentos importantes em seu proveito; de empurrar para a ruína os seus clientes; de seduzir inocências e difamar quem vivia livre de qualquer suspeita, enfim, não muito diferente de certas pessoas, que vivem nos dias de hoje.
Um dia, o bronze dos sinos da vila começaram a dobrar, tristes e lentos. Morrera o escrivão.
Mas, antes de fechar os olhos, quis ele comprar a consideração e o desgosto dos seus conterrâneos, fingindo-se arrependido dos seus actos condenáveis, comungando e recebendo a extrema-unção das mãos ingénuas de um sacerdote.
A falsidade desta atitude, todavia, não convenceu e comoveu ninguém. E, nem o cangalheiro lhe forneceu o caixão, nem o coveiro se dispôs a abrir-lhe a sepultura. Apenas os frades franciscanos do Convento de Santo António tiveram a piedade de dar-lhe um enterro cristão, recolhendo o corpo, entre círios devotos, no chão de uma das capelas da igreja, colocando-lhe, por cima, o peso de uma laje funerária.
Após a cerimónia simples, os bons dos frades regressaram à humildade das celas, para as orações e o sono.
Porém, mal soaram as badaladas da meia-noite, no relógio da torre, eis que três fortes argoladas na porta da igreja acordaram toda a comunidade.
E os frades correram, aflitos, para saberem quem lhes rogava auxílio em horas tão tardias. Deparou-se-lhes, então, no limiar, um cavaleiro muito alto e muito magro, de olhos coruscantes, envolto numa espessa capa negra. Confessava-se parente chegado do escrivão e vinha procurar-lhe a campa, para uma prece. Indicaram-lhe os frades a capela e o túmulo.
Em passos ligeiros e cavos, como se, em vez de pés, possuísse os cascos escuros de um bode, o desconhecido aproximou-se do lugar onde haviam enterrado o escrivão. Então, com uma força sobrenatural, e para pasmo dos frades, ergueu, com as duas mãos, a pedra que ocultava o caixão e arremessou-a para o centro da igreja, como se ela fosse, tão só, um leve feixe de penas!
Depois, tomou um cálice do altar da capela, e, sobre ele, inclinou a boca gelada do escrivão. Com um murro violento nas costas do defunto, obrigou-o a vomitar, sobre o cálice, intacta, a hóstia consagrada que o hipócrita havia sacrilegamente engolido antes de falecer.
O espanto dos frades aumentou em vista deste prodígio. Mais, ainda, quando o estranho cavaleiro, em que reconheciam, persignando-se, a presença do Diabo, arrebatou o corpo inerte do escrivão e, com ele, fugiu por uma das janelas da igreja, partindo-a em mil pedaços de vidros coloridos, e sumindo-se na noite.
Sim, o desconhecido era, de facto, o Diabo em pessoa, que viera buscar, para o seu Reino das Trevas, a alma pecadora do escrivão. Foi com extrema dificuldade que os frades levaram a laje para fora do convento, deixando-a abandonada à curiosidade e terror do povo que, nela, pode distinguir, bem nítidas, as unhas poderosas do Diabo.
4 Comments:
At 5:18 PM, Anonym said…
Não seria possível que o Diabo da tua história viesse cá buscar a escrivã Manuela Ferreira Leite??? Pantanero
At 5:35 PM, Anonym said…
Credo!!! Então o coisa-ruim tb faz "milagres"??? Que o dito seja surdo! Lagart, lagarto, lagarto!!!
Bjs
LI
(loirainteligente.blogs.sapo.pt)
At 5:46 PM, Micas said…
Oh Pantanero, não era?? esse é que ia ser um MILAGRE dos Diabos...
At 6:24 PM, Micas said…
A laje ainda hoje lá está, alimentando a imaginação de uns e a curiosidade de outros. Obrigada pela visita Li. Bjs
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